segunda-feira, 20 de abril de 2015

Começo de tudo





 São Paulo, 20 de outubro de 2010


Meus passos ecoavam pelos paralelepípedos. Tinha chovido bastante e a noite cheirava bem; perdera um pouco do odor de suor, latrinas e mendigos. Nas ruas apenas grupos de jovens buscando por um prazer a mais; por algo que preenchesse um pouco suas vidas já tão secas de sonhos e desprovidas de esperança.
Continuei no meu caminho. Sempre gostei de sair a noite e de ruas vazias. O burburinho da cidade sempre me deixou meio “fora de sintonia”; os gritos dos camêlos, a mistura de perfumes, carros..tudo isso me incomodava muito. No colégio e também na faculdade fui tachado de estranho, diagnosticado como tendo “fobia social”; socialização não era meu forte, preferia estar sozinho curtindo minha misantropia. Não gostava muito de “gente”, achava a vida do ser humano no geral, patética e mediocre. Não tinha motivos para ficar tentando me enquadrar. Sempre vi o mundo com outros olhos e sempre achei esta sociedade muito parecida com um imenso viveiro de hamsters.

Vaguei por algumas horas até chegar ao cemitério do Araçá, meu preferido. Pular o muro era fácil, estava mais do que acostumado. Fui em direção ao jazigo que sempre visitava. Era de uma moça muito bonita. A foto da moldura, bem desgastada, ainda conservava os traços de beleza. Cabelos negros, pele clara e os lábios mais bonitos que eu já tinha visto. Tinha adquirido o hábito de ficar ali..por horas e horas a fio, pensando na garota, em como teria sido sua vida, como teria morrido, era um exercício de imaginação que gostava de fazer. Nunca tive muitos amigos e minha família sempre viu em mim algo de que se envergonhar. Levados apenas pelas aparências e pelo status social lhes era penoso conviver com alguém cheio de tatuagens e piercings. Confesso que me divertia chocando minha mãe e desafiando meu pai, procurava mesmo pelos enfrentamentos onde tinha a oportunidade de extravasar toda minha raiva. O único que realmente demonstrava afeto por mim era o meu irmão caçula. Se não fosse por ele, já teria deixado a casa dos meus pais há tempos.
Passei mais alguns momentos olhando a foto..sentia-me íntimo da moça morta, uma estranha obsessão na verdade. Apaixonado talvez? Loucura amar alguém que já não existia, que talvez não fosse nem mais pó..alguém que seria apenas lembrança.
Resolvi então dar uma volta, torcendo para não encontrar nenhum grupo de góticos ou violadores de túmulos. Poucas semanas atrás tinha me envolvido em uma briga com um destes grupos. Não gostei de vê-los pulando sobre as lápides e estourando os ossários. Teria levado a pior não fosse pela presença de um vulto que acabou por assusta-los fazendo com que fugissem.
Deixei o pensamento fluir..imaginando cada uma daquelas pessoas..suas histórias. Era assustador saber que aos poucos as pessoas vão desaparecendo e em alguns anos ninguém sequer se lembra de sua existência, deixamos de existir e não somos sequer uma vaga memória na vida de alguém. Estava filosofando quando percebi um movimento e olhei para trás. Senti um arrepio na base da espinha, o coração quase saltou pela boca tamanho o susto que levei ao ver uma mulher surgir do nada bem na minha frente. Pude observa-la bem, pois mesmo que quisesse não conseguiria correr..estava preso ao chão de tanto medo que fiquei. Era linda..incrivelmente linda,o que mais me chamou a atenção foram seus olhos. Eram verdes e brilhavam fosforecentes. A mulher parecia flutuar. Passou por mim como se eu não existisse. Chacoalhei a cabeça para tentar me livrar daquela espécie de transe e resolvi segui-la. Parei à frente do Mausoléum onde a mulher havia desaparecido. Não entraria ali..de jeito nenhum! Mais duas mulheres apareceram do nada. Primeiro uma ruiva..depois uma morena. Que diabos estava acontecendo ali? Frequentava aquele cemitério a tempo suficiente para saber que isso não acontecia todo dia. Seria uma festa do tipo excêntrico? Alguma reunião de bruxas? Ou somente gente louca?
A essas alturas o medo deu lugar a curiosidade e resolvi ver o que tinha lá dentro. O máximo que poderia acontecer seria me expulsarem da tal festa. Tomei fôlego e entrei. Passei pela porta e vi que havia outra que estava fechada. Forcei a fechadura e a porta abriu. O interior do Mausoléum estava iluminado. Jamais pensei que algo tão pequeno a primeira vista pudesse ser tão grande por dentro. Aquilo ali parecia um salão de festas ao melhor estilo dantesco. Velas acesas por todos os lados e uma musica bem estranha tocando. Procurei por algum tipo de aparelho de som mas não encontrei nada parecido. Ouvia sons muito diferentes..como se estivessem recitando alguma espécie de mantra. Vozes guturais. Começei a me sentir tonto..tudo rodando à minha volta, minhas pernas não me obedeciam e devo ter desmaiado. Quando voltei a mim percebi que tinha sido amarrado e estava no centro do tal salão. Já não ouvia mais a música e as tais mulheres estavam ao meu lado me observando. Gelei dos pés à cabeça. Quantas vezes nossa empregada tinha dito que a curiosidade matava o gato? Porque não tinha dado meia volta e saído correndo dali logo que vi a primeira mulher? Eu e minha maldita mania de querer saber de tudo, de querer comprovar tudo. Agora talvez fosse morrer ali...mas pensando bem, até que não seria de todo mal. Morrer na compania daquelas mulheres talvez fosse até doce.
Ouvi uma porta abrindo e levantei o pescoço. Dei de cara com a mulher do retrato que vinha em minha direção. Fechei os olhos. Aquilo era um sonho, só podia ser um sonho! Calma Henrique você vai acordar e ver que nada disso aconteceu..mantenha o foco...
Não..não era sonho. Quando abri os olhos gritei! Ela estava lá..olhando para mim e sorrindo. Um sorriso com dentes pontiagudos! Os olhos vermelhos, brilhando zombeteiros.
Me contorci pensando em escapar mas não consegui. Aquilo estava ficando cada vez mais surreal. Não poderia estar acontecendo..era loucura demais.
               - Porque o medo Henrique? Passou tanto tempo me desejando e quando atendo seus pedidos você treme? Onde está sua coragem e sua vontade?
                - Olha..eu não estou com medo...estou apavorado. Por favor, me solte,me deixe ir embora.Juro que nunca mais piso aqui.
                - Sinto muito mas agora é tarde demais para isso. Você tem duas escolhas. Ou morre pelas minhas mãos ou aceita o presente que pretendo lhe dar.
Lágrimas escorreram dos meus olhos. Tudo bem que eu não gostava muito da vida que levava, tudo bem que não tinha um relacionamento bom com os meus pais..mas não queria morrer ali daquele jeito. Como vítima daquele estranho ritual.
                 - E então? Qual a sua escolha? O hálito da mulher muito próximo, me enchia de pavor, mas era também excitante. Eu estava entre a cruz e a espada, como dizem por aí. E nenhuma das hipóteses me parecia realmente agradável.
                 -Eu tenho escolha? Que escolha? Ou morrer ou morrer? Quer saber..termine com isso de uma vez.
                 - Não Henrique..quero ouvir a resposta. Você aceita o meu presente? Aceita viver ao meu lado? Aceita aprender tudo o que tenho a lhe ensinar?
Aquela voz estava me deixando tonto..e a ultima coisa de que me lembro é que murmurei algo..acho que foi um sim porque no instante seguinte senti uma dor lancinante, algo inenarrável. Senti que algo perfurava minha veia do pescoço e logo depois um gosto metálico de sangue na boca.
Gritei, meu corpo convulsionando. Então aquilo que era morrer? Senti meu coração parando...as batidas diminuindo..sons estranhos à minha volta e então veio a escuridão.
Quando acordei, Clara, a moça do retrato estava lá e percebi que não tinha sido um sonho. Tudo era muito real.
                   - Acabou? - perguntei tentando me levantar mas não consegui. Parecia amarrado ao chão.
                   - Não Henrique, tudo apenas começou. Descanse um pouco.

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