São
Paulo, 20 de outubro de 2010
Meus
passos ecoavam pelos paralelepípedos. Tinha chovido bastante e a
noite cheirava bem; perdera um pouco do odor de suor, latrinas e
mendigos. Nas ruas apenas grupos de jovens buscando por um prazer a
mais; por algo que preenchesse um pouco suas vidas já tão secas de
sonhos e desprovidas de esperança.
Continuei
no meu caminho. Sempre gostei de sair a noite e de ruas vazias. O
burburinho da cidade sempre me deixou meio “fora de sintonia”; os
gritos dos camêlos, a mistura de perfumes, carros..tudo isso me
incomodava muito. No colégio e também na faculdade fui tachado de
estranho, diagnosticado como tendo “fobia social”; socialização
não era meu forte, preferia estar sozinho curtindo minha
misantropia. Não gostava muito de “gente”, achava a vida do ser
humano no geral, patética e mediocre. Não tinha motivos para ficar
tentando me enquadrar. Sempre vi o mundo com outros olhos e sempre
achei esta sociedade muito parecida com um imenso viveiro de
hamsters.
Vaguei
por algumas horas até chegar ao cemitério do Araçá, meu
preferido. Pular o muro era fácil, estava mais do que acostumado.
Fui em direção ao jazigo que sempre visitava. Era de uma moça muito
bonita. A foto da moldura, bem desgastada, ainda conservava os traços
de beleza. Cabelos negros, pele clara e os lábios mais bonitos que
eu já tinha visto. Tinha adquirido o hábito de ficar ali..por horas
e horas a fio, pensando na garota, em como teria sido sua vida, como
teria morrido, era um exercício de imaginação que gostava de
fazer. Nunca tive muitos amigos e minha família sempre viu em mim
algo de que se envergonhar. Levados apenas pelas aparências e pelo
status social lhes era penoso conviver com alguém cheio de tatuagens
e piercings. Confesso que me divertia chocando minha mãe e
desafiando meu pai, procurava mesmo pelos enfrentamentos onde tinha a
oportunidade de extravasar toda minha raiva. O único que realmente
demonstrava afeto por mim era o meu irmão caçula. Se não fosse por
ele, já teria deixado a casa dos meus pais há tempos.
Passei
mais alguns momentos olhando a foto..sentia-me íntimo da moça
morta, uma estranha obsessão na verdade. Apaixonado talvez? Loucura
amar alguém que já não existia, que talvez não fosse nem mais
pó..alguém que seria apenas lembrança.
Resolvi
então dar uma volta, torcendo para não encontrar nenhum grupo de
góticos ou violadores de túmulos. Poucas semanas atrás tinha me
envolvido em uma briga com um destes grupos. Não gostei de vê-los
pulando sobre as lápides e estourando os ossários. Teria levado a
pior não fosse pela presença de um vulto que acabou por assusta-los
fazendo com que fugissem.
Deixei o
pensamento fluir..imaginando cada uma daquelas pessoas..suas
histórias. Era assustador saber que aos poucos as pessoas vão
desaparecendo e em alguns anos ninguém sequer se lembra de sua
existência, deixamos de existir e não somos sequer uma vaga memória
na vida de alguém. Estava filosofando quando percebi um movimento e
olhei para trás. Senti um arrepio na base da espinha, o coração
quase saltou pela boca tamanho o susto que levei ao ver uma mulher
surgir do nada bem na minha frente. Pude observa-la bem, pois mesmo
que quisesse não conseguiria correr..estava preso ao chão de tanto
medo que fiquei. Era linda..incrivelmente linda,o que mais me chamou
a atenção foram seus olhos. Eram verdes e brilhavam fosforecentes.
A mulher parecia flutuar. Passou por mim como se eu não existisse.
Chacoalhei a cabeça para tentar me livrar daquela espécie de transe
e resolvi segui-la. Parei à frente do Mausoléum onde a mulher havia
desaparecido. Não entraria ali..de jeito nenhum! Mais duas mulheres
apareceram do nada. Primeiro uma ruiva..depois uma morena. Que diabos
estava acontecendo ali? Frequentava aquele cemitério a tempo
suficiente para saber que isso não acontecia todo dia. Seria uma
festa do tipo excêntrico? Alguma reunião de bruxas? Ou somente gente
louca?
A essas
alturas o medo deu lugar a curiosidade e resolvi ver o que tinha lá
dentro. O máximo que poderia acontecer seria me expulsarem da tal
festa. Tomei fôlego e entrei. Passei pela porta e vi que havia outra
que estava fechada. Forcei a fechadura e a porta abriu. O interior do
Mausoléum estava iluminado. Jamais pensei que algo tão pequeno a
primeira vista pudesse ser tão grande por dentro. Aquilo ali parecia
um salão de festas ao melhor estilo dantesco. Velas acesas por todos
os lados e uma musica bem estranha tocando. Procurei por algum tipo
de aparelho de som mas não encontrei nada parecido. Ouvia sons muito
diferentes..como se estivessem recitando alguma espécie de mantra.
Vozes guturais. Começei a me sentir tonto..tudo rodando à minha
volta, minhas pernas não me obedeciam e devo ter desmaiado. Quando
voltei a mim percebi que tinha sido amarrado e estava no centro do
tal salão. Já não ouvia mais a música e as tais mulheres estavam
ao meu lado me observando. Gelei dos pés à cabeça. Quantas vezes
nossa empregada tinha dito que a curiosidade matava o gato? Porque
não tinha dado meia volta e saído correndo dali logo que vi a
primeira mulher? Eu e minha maldita mania de querer saber de tudo, de
querer comprovar tudo. Agora talvez fosse morrer ali...mas pensando
bem, até que não seria de todo mal. Morrer na compania daquelas
mulheres talvez fosse até doce.
Ouvi uma
porta abrindo e levantei o pescoço. Dei de cara com a mulher do
retrato que vinha em minha direção. Fechei os olhos. Aquilo era um
sonho, só podia ser um sonho! Calma Henrique você vai acordar e ver
que nada disso aconteceu..mantenha o foco...
Não..não
era sonho. Quando abri os olhos gritei! Ela estava lá..olhando para
mim e sorrindo. Um sorriso com dentes pontiagudos! Os olhos
vermelhos, brilhando zombeteiros.
Me
contorci pensando em escapar mas não consegui. Aquilo estava ficando
cada vez mais surreal. Não poderia estar acontecendo..era loucura
demais.
- Porque
o medo Henrique? Passou tanto tempo me desejando e quando atendo
seus pedidos você treme? Onde está sua coragem e sua vontade?
- Olha..eu
não estou com medo...estou apavorado. Por favor, me solte,me deixe
ir embora.Juro que nunca mais piso aqui.- Sinto muito mas agora é tarde demais para isso. Você tem duas escolhas. Ou morre pelas minhas mãos ou aceita o presente que pretendo lhe dar.
Lágrimas
escorreram dos meus olhos. Tudo bem que eu não gostava muito da vida
que levava, tudo bem que não tinha um relacionamento bom com os meus
pais..mas não queria morrer ali daquele jeito. Como vítima daquele
estranho ritual.
- E
então? Qual a sua escolha? O hálito da mulher muito próximo, me
enchia de pavor, mas era também excitante. Eu estava entre a cruz e
a espada, como dizem por aí. E nenhuma das hipóteses me parecia
realmente agradável.-Eu tenho escolha? Que escolha? Ou morrer ou morrer? Quer saber..termine com isso de uma vez.
- Não
Henrique..quero ouvir a resposta. Você aceita o meu presente?
Aceita viver ao meu lado? Aceita aprender tudo o que tenho a lhe
ensinar?
- Acabou?
- perguntei tentando me levantar mas não consegui. Parecia amarrado ao chão.
- Não Henrique, tudo apenas começou. Descanse um pouco.
Aquela
voz estava me deixando tonto..e a ultima coisa de que me lembro é
que murmurei algo..acho que foi um sim porque no instante seguinte
senti uma dor lancinante, algo inenarrável. Senti que algo perfurava
minha veia do pescoço e logo depois um gosto metálico de sangue na
boca.
Gritei,
meu corpo convulsionando. Então aquilo que era morrer? Senti meu
coração parando...as batidas diminuindo..sons estranhos à minha
volta e então veio a escuridão.
Quando
acordei, Clara, a moça do retrato estava lá e percebi que não
tinha sido um sonho. Tudo era muito real.
- Não Henrique, tudo apenas começou. Descanse um pouco.
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