São
Paulo, 02 de dezembro de 2010
Sabe
aqueles dias em que você quer tudo, menos levantar da cama? Pois é,
vampiros também passam por esse tipo de situação e naquela noite
eu estava assim. Não queria levantar, não queria sair, não queria
nada. Meu humor estava horrível, meu estômago vazio indicava que
era hora de sair à caça. Não estava a fim de ir ao “self
service”, não queria dar uma de Don Juan para nenhuma garota
pálida, não queria nada e, ao mesmo tempo, sentia que precisava de
alguma coisa.
Olhei
para o lado, Clara ainda não tinha acordado. Naquele dia não queria
nem a companhia dela. Resolvi sair sozinho. Melhor deixar um bilhete?
Ah..que coisa mais piegas. Não..iria simplesmente sair, ela
entenderia ou depois, quem sabe, eu daria alguma explicação..
Levantei-me,
por fim, alisei minhas roupas. O que me fez pensar que precisava de
roupas novas, não que eu fosse consumista, mas as minhas já estavam
pra lá de surradas. Saí do Mausoléu e olhei a noite. Sem
luar..nublada e garoenta, típica noite paulistana. Os cheiros
estavam todos lá. Um mendigo deveria estar dormindo em algum lugar
por perto, o mau cheiro invadiu minhas narinas. Não era um convite
ao meu paladar que estava se refinando dia a dia. Andei pelo
cemitério, chutando o que encontrava pelo caminho. Definitivamente
não estava em um bom dia.
Para onde
ir agora? Em quase dois meses de “nascido” eu nunca tinha saído sozinho,
sempre estava com ela, mas hoje queria liberdade, queria estar apenas
com meus pensamentos.
Finalmente
Rua da Consolação...vazia. Alguns poucos carros ainda circulavam, o
que não era muito comum, afinal a Babilônia nunca dorme. Sempre
existem pessoas andando por Sampa, o gigantesco formigueiro humano.
Resolvi
ir para o Centrão, lugar dos boêmios e prostitutas, no íntimo eu
buscava por alguma novidade, alguma resposta, ou até mesmo alguma
pergunta. Depois que soube como Clara havia sido criada, minhas
ideias tinham dado TILT, pensava, pensava e não conseguia chegar a
lugar algum. Talvez uma pesquisa mais apurada, uma investigação
mais profunda pudesse me levar a um ponto onde pudesse, de fato,
começar a buscar a tal mulher. Nos filmes sempre fora tão fácil..o
mocinho sempre sabia o que fazer, para onde ir e o que perguntar. Mas
aquilo ali era a vida real e eu me sentia total e completamente
perdido.
Andava a
esmo pela cidade, atravessei a Praça da República e fui
atentamente observado por um grupo de menores que dormia por ali.
Seus olhares pousados sobre mim..pude ler os pensamentos. Queriam meu
dinheiro, pensavam em me assaltar, mas ao olhar para mim sentiram
medo. Um medo ancestral, medo que sentem apenas os ratos, acostumados
a sobreviver em meio ao caos. Eu poderia tê-los atacado, poderia
cravar meus dentes em seus pescoços, poderia até me beneficiar da
droga que tinham acabado de consumir. Talvez fosse prazeroso ver
suas traquéias destruídas, colocar um fim em suas malditas vidas de
crianças abandonadas, mas não..preferi seguir meu caminho. Um
caminho estranho pois não sabia onde estava indo. Acabei na Rua
Aurora.
Para quem
não conhece, a Rua Aurora é conhecida como Zona de puta pobre,
aquelas que fazem programas por R$ 10,00 e ainda é capaz de voltar
troco. Vi muitas mulheres se expondo nas calçadas, seus rostos
cansados, vidas jogadas fora, por necessidade, por falta de opção,
por vício. Existe uma grande diferença entre as putas da Aurora e
as putas da Alta Augusta. As primeiras são como carne de terceira em
um açougue..ninguém quer, ninguém gosta, mas em caso de
necessidade, são consumidas, sem muito critério, sem qualquer tipo
de requinte. Uma vez recorri a esse tipo de “lanche” mas te
aconselho a nunca fazer o mesmo. Com as putas da Alta Augusta é
diferente. Mocinhas bem nutridas, bem cuidadas, universitárias,
bilíngues, frequentadoras de academia e salões de beleza. Todas
lindas..solicitas e muito bem remuneradas. Pratos para muitos
talheres se querem mesmo saber.
Em outra
época eu teria vergonha de mim mesmo por pensar assim, mas agora eu
era um predador, um jardineiro dono de um imenso e generoso jardim e
estes meus comentários podem ser comparados ao de um botânico que
apenas analisa a qualidade das plantas que semeia. Existem as
espécimes raras e existem as ervas daninhas. Simples assim.
_ Ei
garoto, tá a fim de diversão? - Tomei um susto, estava tão
absorto em meus pensamentos que nem reparei na mulher ao meu lado.
Sorri para a triste figura. Esquálida, maquiagem fortissima que
tentava encobrir anos de uso e sofrimento, os braços picados,
indicativo do uso de drogas. Era patética e,mesmo assim, tentava
ganhar seu sustento.
- Valeu
a oferta, mas hoje não.
Ela
agarrou meu braço, estava desesperada. Percebi que precisava da
grana para o próximo pico e eu parecia o cliente perfeito.
- Vamos
garotão, garanto que não irá se arrepender. Os dentes mau
cuidados fediam e tive nojo daquela boca pegajosa. Definitivamente
eu não me alimentaria dela, nem que os céus ou o inferno
determinassem.
- Já
disse que não estou a fim – calmamente tirei as mãos dela que se
agarravam à minha jaqueta. Tive pena, tão fraca, tão patética.
Tão morta.
Os
humanos não percebem, mas muitos de vocês já estão mortos antes
de cerrarem seus olhos e irem para as cidades dos pés juntos. Morrem
muito cedo inclusive. E aos nossos olhos, não passam de cadáveres
em decomposição. Quando morrem os sonhos, quando se vão as
perspectivas, a vida também se esvai de seus corpos e passam a ser
apenas conchas vazias. Não são atraentes nem para o mais simplório
dos vampiros.
- Por
favor, me dê o dinheiro. Eu preciso! - Naquelas alturas ela já
havia se enroscado em mim como uma trepadeira, uma erva daninha –
Dei-lhe um empurrão. Não gostava de violência, mas meus instintos
agora agiam por conta própria. Já não era o mesmo cara, compaixão
existia apenas nos meus pensamentos, não em minhas ações.
- Caí fora
dona..caí fora ou vai se arrepender! Ela então me agarrou, estava
claramente desesperada. O vício joga as pessoas em situações
complicadas. Sei disso porque de uma forma ou de outra, também sou
um viciado. Viciado em sangue..viciado em vocês, pequenas e
saborosas criaturinhas.
É..não
haveria outra forma de sair daquele enrosco..ou daria a ela uma grana
que, diga-se de passagem eu não tinha, ou me alimentaria daquele
sangue mirrado ou...
-Tá
certo dona, venha cá..vamos nos divertir um pouco. Bloqueei minhas
vias respiratórias. Não respiramos, mas os odores para os vampiros
tornam-se muito fortes, somos guiados por feromônios, aromas e
cheiros, assim como os lobos e outros animais.
Agarrei a
mulher pelo braço e a arrastei para um beco qualquer, queria
terminar logo com aquilo, já tinha perdido tempo demais. Passei a
mão pelo seu rosto. Um rosto que um dia fora bonito e que agora não
passava de uma caricatura, deformada e borrada. Senti até mesmo uma
certa ternura por aquela criatura.
- Você
quer esquecer não é? Quer esquecer de tudo..anseia pela escuridão?
Continei a fazer carinho em seu rosto e logo ela estava sob meu
controle, dócil, entregue. Foi apenas um golpe e o sangue
jorrou..seu pescoço aberto de fora a fora..uma expressão de prazer
gravada naquele ultimo momento. Morrera feliz, acariciada e até
respeitada, foi um ato de caridade colocar fim àquela vida. Se não
houvesse sido eu, talvez fosse algum outro homem, mas com certeza
não seria por piedade. Larguei o corpo ali mesmo. Ninguém
investigaria a morte de uma prostituta da Rua Aurora, diriam que
tinha sido vingança, cobrança de traficantes..enfim, ninguém iria
se importar com aquela mulher e eu já havia me importado o
suficiente.
Meu
estômago dava sinais de que eu precisava me alimentar e logo. Apressei meus passos..teria que
encontrar alguém logo, ou estaria ferrado. Deveria ter me alimentado
da prostituta? Não..nem em mil anos faria isso. Voltei para a Praça
da República. Ao lado do Tribunal Regional Federal tem uma padaria
que funciona 24 horas. Lá você até pode encontrar uma refeição
decente, já que o ponto de embarque para o aeroporto fica quase ao
lado. Entrei e pedi uma cerveja. Fiquei ali por algum tempo olhando e
procurando meu desejum. Não precisei esperar muito. Logo meu café
da manhã entrou pela porta. Jovem..deveria ter entre 18 a 20 anos.
Um case de guitarra nas costas. Ah..músicos, seu sangue tem algo de
frescor..leve e ao mesmo tempo seco. Um Cabernet Sauvignon..das
melhores vinícolas italianas ou chilenas.
Com uma
simples ordem mental, os vampiros podem fazer com que suas vítimas
obedeçam..isso é um truque que usamos para facilitar nossas
caçadas. Quantos de vocês já sentiram atração inexplicável e
agiram como autômatos diante de uma pessoa? É senhores e
senhoras...ou estavam diante de um vampiro de sangue ou talvez de um
vampiro psíquico..deveriam aprender algumas coisinhas com os magos
antes de saírem para a noite.
Ele
sentou-se ao meu lado, exatamente como ordenei.Pediu um refrigerante
e ficou ali pensando. Eu podia ler tudo, como um gibi. Novo na banda,
primeiro show longe, tinha pedido as contas no trampo e pagaria a
própria passagem para Porto Alegre. Queria fazer bonito para a
galera da banda. Iria ser um grande guitarrista, estava estudando
para isso. Seus pais não o apoiavam, diziam que música é coisa de
vagabundo, que deveria cortar o cabelo, fazer faculdade, arrumar um
emprego decente, tratar melhor a namorada. Mas ele queria
mais..queria a estrada, queria os palcos e que os pais ficassem
lá..com as ideias atrasadas do século passado.
Gostei do
garoto..ele era como eu, jovem, determinado e um pouco perdido.
- E
aí? Beleza? Prazer – estendi a mão para cumprimentá-lo. Meu
nome é Henrique. Toca em que banda? - Puxei conversa e ele se
assustou, estava perdido em pensamentos e não esperava que o cara
ao lado fosse conversar, mas se animou ao ver que alguém se
interessava por sua arte.
- Ah..com
certeza tu não deve conhecer, não estamos no mainstream ainda. -
Conheço mais do underground do que você imagina cara...me diz o
nome da banda que te digo se conheço ou não.
- O
nome da banda é Kingdom Stone. A gente fazia cover até o ano
passado, mas agora lançamos nosso primeiro EP saca? Tamo batalhando
e tals. Agora ele realmente estava animado..eu havia acertado em
cheio no seu ego e ele se dispunha a falar mais e mais.
- Kingdom
Stone..o nome não me é estranho..você tem algum material gravado
no celular ou algo do tipo para eu poder escutar? - Pareceu que o
garoto estava esperando a deixa, sacou logo o celular e me deixou
escuta-lo.
Logo os
primeiros acordes da guitarra invadiram meus ouvidos. A música era
realmente boa, falava de loucura, de dor...era uma carta. Uma carta
de um suicida. A voz do vocalista me chamou a atenção em especial,
era um timbre diferente. Talvez valesse a pena conhecer a tal
banda...quem sabe.
-Taí
cara, curti – disse entregando a ele o celular. Vocês tem futuro.
Vão fazer show aonde?
- Estamos
indo para Porto Alegre. Conseguimos uma mini turnê por lá, mas não
deu pra bancar a passagem de todo mundo então tive que me
virar..sabe como é né..vida de músico no Brasil não é fácil.
- Tá
certo..tem mais é que investir nos teus sonhos mesmo. Quem não
sonha, quem não luta, tá morto e não sabe.
Ficamos
ali jogando conversa fora por mais um tempo. Sempre tive o hábito de
saber um pouco mais sobre a vida das pessoas das quais me
alimentei..não sei dizer exatamente o motivo, mas depois de beber o
sangue deles era como se eu passasse a fazer parte da sua história
também.
Ele então
olhou para o relógio, chamou o atendente, pagou sua conta e
levantou-se para ir embora. Era o momento de agir. - Mais uma ordem
mental - “Você vai perguntar se eu não quero te acompanhar até o
embarque”.
- Ei
cara..tu me acompanha até o embarque? O papo tá muito da hora.
- Claro..a
gente troca mais umas ideias..tu pega o número do meu telefone e
assim fico sabendo do próximo show. Infelizmente não tenho como ir
para POA agora, senão até iria pra acompanhar a banda e tals.
Saímos
da padaria..até a sala de recepção dos ônibus que iam para o
Aeroporto de Guarulhos havia um vão, a entrada para o Tribunal
Federal. Geralmente aprecio um pouco mais de privacidade, mas a
capacidade de não se fazer notar iria me servir como uma luva
naquele instante.
Quando
passamos pela porta do Tribunal, expedi outro comando mental –
Pare! Ele estacou. É divertido brincar de marionetes com vocês
mortais, se soubessem como se proteger ficaria muito mais complicado,
mas como duvidam de tudo, nossa vida torna-se muito fácil e
divertida. Feche os olhos, você não irá se lembrar do que
acontecerá agora..isso vai apagar da tua mente.!
Comando
obedecido. Levei o garoto para o vão da porta e dei graças aos céus
por haverem tantos rebeldes na cidade. As câmaras de vigilância
tinham sido quebradas..se não fosse por isso, estaria me arriscando
demais.
Não
perdi tempo. Com vítimas masculinas, um vampiro como eu não precisa
se esmerar em sedução ou preliminares..é tudo muito rápido.
Morder...beber e fechar a garrafa. Não demora mais do que 5 minutos
nessa operação. O sangue do rapaz, Gabriel o nome dele, era
bom..fresco, com algumas notas cítricas..algo de amadeirado..um
excelente bouquet. Me senti rejuvenescido..era ora de deixar o
pequeno hamster seguir seu caminho. Tive apenas o cuidado de pegar o
número do celular. Queria mesmo acompanhar a tal banda..poderiam vir
a ser úteis e muito interessantes. Eu tinha grandes planos..planos
que nem sabia que existiam até aquele momento.
Outra
ordem – Acorde e continue a andar, não aconteceu nada..estamos
indo para o embarque do ônibus!.
Ele
obedeceu e o acompanhei até a sala de recepção. Estava tarde e
Clara já deveria ter chego, sabia que ela não me esperaria e estava
pronto para voltar.
- Bom
cara, te desejo boa sorte. A banda é boa, a música é otima.
Espero poder ir a algum show de vocês qualquer dia.
- Valeu
Henrique, foi um prazer te conhecer.
E lá se
foi meu café da manhã..feliz e satisfeito, sem desconfiar que havia
sido vítima de um vampiro. Não esperem ver marcas de dentes nos
pescoços de nossas vítimas..um bom vampiro sabe como fechar os
ferimentos..os outros, são apenas amadores.
É.apesar
de ter acordado de mau humor, aquela noite tinha valido a pena. Agora
era ir rápido para casa e contar minha aventura para Clara.
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