terça-feira, 21 de abril de 2015

Andando pela cidade



São Paulo, 02 de dezembro de 2010





Sabe aqueles dias em que você quer tudo, menos levantar da cama? Pois é, vampiros também passam por esse tipo de situação e naquela noite eu estava assim. Não queria levantar, não queria sair, não queria nada. Meu humor estava horrível, meu estômago vazio indicava que era hora de sair à caça. Não estava a fim de ir ao “self service”, não queria dar uma de Don Juan para nenhuma garota pálida, não queria nada e, ao mesmo tempo, sentia que precisava de alguma coisa.

Olhei para o lado, Clara ainda não tinha acordado. Naquele dia não queria nem a companhia dela. Resolvi sair sozinho. Melhor deixar um bilhete? Ah..que coisa mais piegas. Não..iria simplesmente sair, ela entenderia ou depois, quem sabe, eu daria alguma explicação..
Levantei-me, por fim, alisei minhas roupas. O que me fez pensar que precisava de roupas novas, não que eu fosse consumista, mas as minhas já estavam pra lá de surradas. Saí do Mausoléu e olhei a noite. Sem luar..nublada e garoenta, típica noite paulistana. Os cheiros estavam todos lá. Um mendigo deveria estar dormindo em algum lugar por perto, o mau cheiro invadiu minhas narinas. Não era um convite ao meu paladar que estava se refinando dia a dia. Andei pelo cemitério, chutando o que encontrava pelo caminho. Definitivamente não estava em um bom dia.
Para onde ir agora? Em quase dois meses de “nascido” eu nunca tinha saído sozinho, sempre estava com ela, mas hoje queria liberdade, queria estar apenas com meus pensamentos.
Finalmente Rua da Consolação...vazia. Alguns poucos carros ainda circulavam, o que não era muito comum, afinal a Babilônia nunca dorme. Sempre existem pessoas andando por Sampa, o gigantesco formigueiro humano.
Resolvi ir para o Centrão, lugar dos boêmios e prostitutas, no íntimo eu buscava por alguma novidade, alguma resposta, ou até mesmo alguma pergunta. Depois que soube como Clara havia sido criada, minhas ideias tinham dado TILT, pensava, pensava e não conseguia chegar a lugar algum. Talvez uma pesquisa mais apurada, uma investigação mais profunda pudesse me levar a um ponto onde pudesse, de fato, começar a buscar a tal mulher. Nos filmes sempre fora tão fácil..o mocinho sempre sabia o que fazer, para onde ir e o que perguntar. Mas aquilo ali era a vida real e eu me sentia total e completamente perdido.
Andava a esmo pela cidade, atravessei a Praça da República e fui atentamente observado por um grupo de menores que dormia por ali. Seus olhares pousados sobre mim..pude ler os pensamentos. Queriam meu dinheiro, pensavam em me assaltar, mas ao olhar para mim sentiram medo. Um medo ancestral, medo que sentem apenas os ratos, acostumados a sobreviver em meio ao caos. Eu poderia tê-los atacado, poderia cravar meus dentes em seus pescoços, poderia até me beneficiar da droga que tinham acabado de consumir. Talvez fosse prazeroso ver suas traquéias  destruídas, colocar um fim em suas malditas vidas de crianças abandonadas, mas não..preferi seguir meu caminho. Um caminho estranho pois não sabia onde estava indo. Acabei na Rua Aurora.
Para quem não conhece, a Rua Aurora é conhecida como Zona de puta pobre, aquelas que fazem programas por R$ 10,00 e ainda é capaz de voltar troco. Vi muitas mulheres se expondo nas calçadas, seus rostos cansados, vidas jogadas fora, por necessidade, por falta de opção, por vício. Existe uma grande diferença entre as putas da Aurora e as putas da Alta Augusta. As primeiras são como carne de terceira em um açougue..ninguém quer, ninguém gosta, mas em caso de necessidade, são consumidas, sem muito critério, sem qualquer tipo de requinte. Uma vez recorri a esse tipo de “lanche” mas te aconselho a nunca fazer o mesmo. Com as putas da Alta Augusta é diferente. Mocinhas bem nutridas, bem cuidadas, universitárias, bilíngues, frequentadoras de academia e salões de beleza. Todas lindas..solicitas e muito bem remuneradas. Pratos para muitos talheres se querem mesmo saber.
Em outra época eu teria vergonha de mim mesmo por pensar assim, mas agora eu era um predador, um jardineiro dono de um imenso e generoso jardim e estes meus comentários podem ser comparados ao de um botânico que apenas analisa a qualidade das plantas que semeia. Existem as espécimes raras e existem as ervas daninhas. Simples assim.
             _ Ei garoto, tá a fim de diversão? - Tomei um susto, estava tão absorto em meus pensamentos que nem reparei na mulher ao meu lado. Sorri para a triste figura. Esquálida, maquiagem fortissima que tentava encobrir anos de uso e sofrimento, os braços picados, indicativo do uso de drogas. Era patética e,mesmo assim, tentava ganhar seu sustento.
              - Valeu a oferta, mas hoje não.
Ela agarrou meu braço, estava desesperada. Percebi que precisava da grana para o próximo pico e eu parecia o cliente perfeito.
              - Vamos garotão, garanto que não irá se arrepender. Os dentes mau cuidados fediam e tive nojo daquela boca pegajosa. Definitivamente eu não me alimentaria dela, nem que os céus ou o inferno determinassem.
               - Já disse que não estou a fim – calmamente tirei as mãos dela que se agarravam à minha jaqueta. Tive pena, tão fraca, tão patética. Tão morta.
Os humanos não percebem, mas muitos de vocês já estão mortos antes de cerrarem seus olhos e irem para as cidades dos pés juntos. Morrem muito cedo inclusive. E aos nossos olhos, não passam de cadáveres em decomposição. Quando morrem os sonhos, quando se vão as perspectivas, a vida também se esvai de seus corpos e passam a ser apenas conchas vazias. Não são atraentes nem para o mais simplório dos vampiros.
                - Por favor, me dê o dinheiro. Eu preciso! - Naquelas alturas ela já havia se enroscado em mim como uma trepadeira, uma erva daninha – Dei-lhe um empurrão. Não gostava de violência, mas meus instintos agora agiam por conta própria. Já não era o mesmo cara, compaixão existia apenas nos meus pensamentos, não em minhas ações.
          - Caí fora dona..caí fora ou vai se arrepender! Ela então me agarrou, estava claramente desesperada. O vício joga as pessoas em situações complicadas. Sei disso porque de uma forma ou de outra, também sou um viciado. Viciado em sangue..viciado em vocês, pequenas e saborosas criaturinhas.
É..não haveria outra forma de sair daquele enrosco..ou daria a ela uma grana que, diga-se de passagem eu não tinha, ou me alimentaria daquele sangue mirrado ou...
                 -Tá certo dona, venha cá..vamos nos divertir um pouco. Bloqueei minhas vias respiratórias. Não respiramos, mas os odores para os vampiros tornam-se muito fortes, somos guiados por feromônios, aromas e cheiros, assim como os lobos e outros animais.
Agarrei a mulher pelo braço e a arrastei para um beco qualquer, queria terminar logo com aquilo, já tinha perdido tempo demais. Passei a mão pelo seu rosto. Um rosto que um dia fora bonito e que agora não passava de uma caricatura, deformada e borrada. Senti até mesmo uma certa ternura por aquela criatura.
                             - Você quer esquecer não é? Quer esquecer de tudo..anseia pela escuridão? Continei a fazer carinho em seu rosto e logo ela estava sob meu controle, dócil, entregue. Foi apenas um golpe e o sangue jorrou..seu pescoço aberto de fora a fora..uma expressão de prazer gravada naquele ultimo momento. Morrera feliz, acariciada e até respeitada, foi um ato de caridade colocar fim àquela vida. Se não houvesse sido eu, talvez fosse algum outro homem, mas com certeza não seria por piedade. Larguei o corpo ali mesmo. Ninguém investigaria a morte de uma prostituta da Rua Aurora, diriam que tinha sido vingança, cobrança de traficantes..enfim, ninguém iria se importar com aquela mulher e eu já havia me importado o suficiente.
Meu estômago dava sinais de que eu precisava me alimentar e logo. Apressei meus passos..teria que encontrar alguém logo, ou estaria ferrado. Deveria ter me alimentado da prostituta? Não..nem em mil anos faria isso. Voltei para a Praça da República. Ao lado do Tribunal Regional Federal tem uma padaria que funciona 24 horas. Lá você até pode encontrar uma refeição decente, já que o ponto de embarque para o aeroporto fica quase ao lado. Entrei e pedi uma cerveja. Fiquei ali por algum tempo olhando e procurando meu desejum. Não precisei esperar muito. Logo meu café da manhã entrou pela porta. Jovem..deveria ter entre 18 a 20 anos. Um case de guitarra nas costas. Ah..músicos, seu sangue tem algo de frescor..leve e ao mesmo tempo seco. Um Cabernet Sauvignon..das melhores vinícolas italianas ou chilenas.
Com uma simples ordem mental, os vampiros podem fazer com que suas vítimas obedeçam..isso é um truque que usamos para facilitar nossas caçadas. Quantos de vocês já sentiram atração inexplicável e agiram como autômatos diante de uma pessoa? É senhores e senhoras...ou estavam diante de um vampiro de sangue ou talvez de um vampiro psíquico..deveriam aprender algumas coisinhas com os magos antes de saírem para a noite.
Ele sentou-se ao meu lado, exatamente como ordenei.Pediu um refrigerante e ficou ali pensando. Eu podia ler tudo, como um gibi. Novo na banda, primeiro show longe, tinha pedido as contas no trampo e pagaria a própria passagem para Porto Alegre. Queria fazer bonito para a galera da banda. Iria ser um grande guitarrista, estava estudando para isso. Seus pais não o apoiavam, diziam que música é coisa de vagabundo, que deveria cortar o cabelo, fazer faculdade, arrumar um emprego decente, tratar melhor a namorada. Mas ele queria mais..queria a estrada, queria os palcos e que os pais ficassem lá..com as ideias atrasadas do século passado.
Gostei do garoto..ele era como eu, jovem, determinado e um pouco perdido.
             - E aí? Beleza? Prazer – estendi a mão para cumprimentá-lo. Meu nome é Henrique. Toca em que banda? - Puxei conversa e ele se assustou, estava perdido em pensamentos e não esperava que o cara ao lado fosse conversar, mas se animou ao ver que alguém se interessava por sua arte.
             - Ah..com certeza tu não deve conhecer, não estamos no mainstream ainda. - Conheço mais do         underground do que você imagina cara...me diz o nome da banda que te digo se conheço ou não.
              - O nome da banda é Kingdom Stone. A gente fazia cover até o ano passado, mas agora lançamos nosso primeiro EP saca? Tamo batalhando e tals. Agora ele realmente estava animado..eu havia acertado em cheio no seu ego e ele se dispunha a falar mais e mais.
               - Kingdom Stone..o nome não me é estranho..você tem algum material gravado no celular ou algo do tipo para eu poder escutar? - Pareceu que o garoto estava esperando a deixa, sacou logo o celular e me deixou escuta-lo.
Logo os primeiros acordes da guitarra invadiram meus ouvidos. A música era realmente boa, falava de loucura, de dor...era uma carta. Uma carta de um suicida. A voz do vocalista me chamou a atenção em especial, era um timbre diferente. Talvez valesse a pena conhecer a tal banda...quem sabe.
                -Taí cara, curti – disse entregando a ele o celular. Vocês tem futuro. Vão fazer show aonde?
                - Estamos indo para Porto Alegre. Conseguimos uma mini turnê por lá, mas não deu pra bancar a passagem de todo mundo então tive que me virar..sabe como é né..vida de músico no Brasil não é fácil.
                 - Tá certo..tem mais é que investir nos teus sonhos mesmo. Quem não sonha, quem não luta, tá morto e não sabe.
Ficamos ali jogando conversa fora por mais um tempo. Sempre tive o hábito de saber um pouco mais sobre a vida das pessoas das quais me alimentei..não sei dizer exatamente o motivo, mas depois de beber o sangue deles era como se eu passasse a fazer parte da sua história também.
Ele então olhou para o relógio, chamou o atendente, pagou sua conta e levantou-se para ir embora. Era o momento de agir. - Mais uma ordem mental - “Você vai perguntar se eu não quero te acompanhar até o embarque”.
                  - Ei cara..tu me acompanha até o embarque? O papo tá muito da hora.
                  - Claro..a gente troca mais umas ideias..tu pega o número do meu telefone e assim fico sabendo do próximo show. Infelizmente não tenho como ir para POA agora, senão até iria pra acompanhar a banda e tals.
Saímos da padaria..até a sala de recepção dos ônibus que iam para o Aeroporto de Guarulhos havia um vão, a entrada para o Tribunal Federal. Geralmente aprecio um pouco mais de privacidade, mas a capacidade de não se fazer notar iria me servir como uma luva naquele instante.
Quando passamos pela porta do Tribunal, expedi outro comando mental – Pare! Ele estacou. É divertido brincar de marionetes com vocês mortais, se soubessem como se proteger ficaria muito mais complicado, mas como duvidam de tudo, nossa vida torna-se muito fácil e divertida. Feche os olhos, você não irá se lembrar do que acontecerá agora..isso vai apagar da tua mente.!
Comando obedecido. Levei o garoto para o vão da porta e dei graças aos céus por haverem tantos rebeldes na cidade. As câmaras de vigilância tinham sido quebradas..se não fosse por isso, estaria me arriscando demais.
Não perdi tempo. Com vítimas masculinas, um vampiro como eu não precisa se esmerar em sedução ou preliminares..é tudo muito rápido. Morder...beber e fechar a garrafa. Não demora mais do que 5 minutos nessa operação. O sangue do rapaz, Gabriel o nome dele, era bom..fresco, com algumas notas cítricas..algo de amadeirado..um excelente bouquet. Me senti rejuvenescido..era ora de deixar o pequeno hamster seguir seu caminho. Tive apenas o cuidado de pegar o número do celular. Queria mesmo acompanhar a tal banda..poderiam vir a ser úteis e muito interessantes. Eu tinha grandes planos..planos que nem sabia que existiam até aquele momento.
Outra ordem – Acorde e continue a andar, não aconteceu nada..estamos indo para o embarque do ônibus!.
Ele obedeceu e o acompanhei até a sala de recepção. Estava tarde e Clara já deveria ter chego, sabia que ela não me esperaria e estava pronto para voltar.
            - Bom cara, te desejo boa sorte. A banda é boa, a música é otima. Espero poder ir a algum show de vocês qualquer dia.
            - Valeu Henrique, foi um prazer te conhecer.
E lá se foi meu café da manhã..feliz e satisfeito, sem desconfiar que havia sido vítima de um vampiro. Não esperem ver marcas de dentes nos pescoços de nossas vítimas..um bom vampiro sabe como fechar os ferimentos..os outros, são apenas amadores.
É.apesar de ter acordado de mau humor, aquela noite tinha valido a pena. Agora era ir rápido para casa e contar minha aventura para Clara.

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