segunda-feira, 20 de abril de 2015

Self Service




São Paulo, 23 de novembro de 2010




Depois daquela noite com Clara, muitas coisas aconteceram na minha vida (ou falta dela). Tive que fazer um intensivão para me tornar um vampiro passável e, confesso não ter sido nada fácil. São muitos os paradigmas que criamos enquanto mortais, são muitas as coisas que temos de esquecer quando passamos para o “lado de cá”.
A primeira coisa que tive de fazer, logo na noite seguinte, foi sair à caça. Clara me explicou que sangue de animais não é uma boa fonte de alimento e que eu não me parecia nenhum pouco com o Louis de “Entrevista com o Vampiro”.
    - Vamos lá – ela disse – não é nenhum bicho de sete cabeças. As pessoas tem uma atração especial por vampiros, principalmente em alguns lugares específicos. Algumas chegam a nos procurar, caçam uma oportunidade mesmo sem saber. Vou te levar a um lugar que você irá amar, é como um gigantesco “Self Service”.
Clara disse isso e saiu praticamente arrastando um cara confuso e com medo, pelas ruas de São Paulo. Em um piscar de olhos estávamos na Brigadeiro Luis Antonio, rumando para uma casa noturna que logo identifiquei como sendo o Madame Satã. Entramos na fila e logo nos misturamos com a multidão de seres pálidos, vestidos de preto. Clara olhava para mim e divertia-se com a minha apreensão. Eu ali..parado, sem saber o que fazer. Sentindo uma aflição cada vez maior, uma dor (sim..vampiros, mesmo mortos sentem coisas que parecem ser dor) no estômago, uma loucura se instalando em minha mente. Meus sentidos captavam a vida ao meu redor, meus olhos se fixavam nas jugulares escondidas entre golas altas, os sons à minha volta pareciam cada vez mais altos, eu estava a ponto de surtar quando ela cochichou em meu ouvido: - Calma..tenha somente um pouco mais de paciência que tudo vai acabar bem.

Eu assenti com um leve movimento de cabeça..não conseguiria esboçar nenhuma outra reação, parecia estar saindo fora de mim..era uma loucura e eu não queria pirar logo ali..logo naquele momento. Fixei meu pensamento..me esforcei para parecer um cara normal, fingi respirar fundo, forcei um sorriso e continuei na fila que logo andou.
Finalmente estávamos lá dentro. O ambiente era propício e convidativo. Penumbra, velas e o cheiro de sangue..doce e pungente, um absinto que eu queria provar a todo custo, mas que, ao mesmo tempo me repugnava. Como beber o sangue de alguém? O que eu era agora, um monstro sem coração? Como matar, tirar uma vida inocente?
Clara parecia ler meus pensamentos. Me puxou para um canto mais escuro e com sua voz de sereia começou a me explicar –  Você não tem que matar..tem apenas que se alimentar. Eles – apontou para a multidão – são apenas flores em seu grandioso jardim..você as colhe se quiser, mas pode apenas sentir o seu aroma..alimentar-se se sua beleza, não é necessário que arranque suas flores da terra, pode usufrui-las apenas.
Dizendo isso, Clara aproximou-se de um cara  pálido, sorriu para ele que, imediatamente, como se hipnotizado, a seguiu para um outro local. Claro que fui atrás, mesmo porque já tinha sido picado pelo ciúmes.
Fomos em direção a pista de dança. Um local ainda mais escuro onde a galera se divertia em dançar com a sombra. Alguns ousavam um pouco mais. Apurando um pouco minha visão, pude ver alguns casais realmente se divertindo. Se é que vocês me entendem....
Clara ali com aquele estranho..seduzindo, prometendo..instigando e eu ali como um pateta, apenas assistindo. Nunca levei jeito para o  voyeurismo, nunca foi a minha praia, mas não conseguia tirar os olhos da cena que se desenrolava ante meus olhos. Ela se deixava beijar...as mãos daquele cara passeando por aquele corpo que , até então, eu pensava que era “meu”. Nessa hora até esqueci que estava lá para aprender a caçar, eu queria mesmo era arrancar a cabeça daquele idiota. Não conseguia pensar. A fome, o ciúmes, a insegurança..tudo ali..misturado, me tirando do meu mundo e me jogando em um inferno que não sabia como escapar.
Foi quando eu vi o estranho cambalear..olhei novamente e vi Clara sorrindo..um filete de sangue escorrendo pelo canto do seu lábio. Juro que nunca vi nada mais sexy em minha vida. Ela parecia um anjo..um anjo sinistro.
O rapaz ficou cambaleando como bêbado por alguns segundos..depois sacudiu a cabeça..olhou em volta, passou pela gente como se não nos conhecesse e subiu as escadas.
Olhei para Clara espantado e ela riu..não para mim..mas de mim. Devo ter feito cara de idiota, porque ela estava se divertindo muito naquele momento.
       -Vem cá..vou te explicar direitinho como fazer. Está vendo aquelas gurias ali? - e apontou para três garotas, todas vestidas de preto, com maquiagem pesada, uma visão inspiradora. Feche os olhos por um segundo, sinta a essência de cada uma delas – Isso – você está indo bem. Sentiu o pulsar do coração? Sentiu o cheiro do sangue? Então..qual delas lhe pareceu mais apetitosa? - Eu apontei para uma ruiva, todo sem jeito porque não sabia o que teria que fazer. Clara com jeito de professora de jardim da infância, toda paciência, continuou a me explicar.
         - Assim que você escolhe qual “prato” prefere. É só aproximar-se. Exercemos sobre nossa caça, uma atração animal. Aos olhos deles parecemos lindos, fortes, irresistíveis. É o mesmo tipo de atração que as cobras exercem sobre suas vítimas. Os mortais ficam como que hipnotizados ante a aproximação de um vampiro. Duvida? Vá até lá e experimente.
          - Certo..vou até lá..a garota vai ficar hipnotizada mas e depois o que eu faço? Peço licença para morder o pescoço? Pergunto se ela tem catchup e mostarda para me emprestar? Clara tenha dó..eu nunca fiz isso entende? Para mim é um absurdo morder um pescoço..me alimentar de uma pessoa assim..não tem um jeito mais fácil?
           - Não..não tem, a não ser que você queira virar um assaltante de banco de sangue e tornar-se uma simples larva, rastejando por aí e negando sua natureza, desperdiçando o presente que lhe dei. Clara virou as costas para mim e me lembrei de como as mulheres podem ser temperamentais.
            - Ok, tudo bem..continue me explicando o que fazer. Vou até lá, e faço o que?
Ela suspirou como que resignada e continuou com sua aula – Certo..vá até lá..jogue todo o seu charme em cima da garota. Faça com que ela te siga para algum lugar e se divirta um pouco. Verá que é muito interessante ter alguém sob seu controle. Eles reagem ao mínimo toque. Faça com que ela implore..faça com que se derreta aos seus pés. Exerça seu poder. É para isso que nascemos. Depois, quando quiser, deixe que a natureza siga o seu curso, só se preocupe em parar antes que ela morra..não pegue muito sangue..só o suficiente. Na primeira vez é difícil porque não temos vontade de parar, mas ao menos que queira sair por aí escondendo cadáveres é bom prestar atenção na quantidade. Isso é um outro ponto que precisa aprender: Escolha sempre os melhores exemplares, eles tem o melhor sangue, então não precisa mata-los. Uma quantidade normal já será o suficiente.
Dizendo isso Clara não me deu tempo para mais nada, me deu um empurrão e logo me vi indo em direção ao grupo de garotas.
Eu nunca levei muito jeito para Don Juan, sempre fui o Nerd de que todas gostavam e jogavam para a friend zone, como iria hipnotizar uma mulher? Fui pensando nisso e estaquei perto das mulheres. Um turbilhão pareceu me atingir naquele instante. O cheiro do sangue, doce, metálico, invadiu meus sentidos. Eu não era mais eu..tinha me transformado, não sei o que era, mas era bom. Olhei para a ruiva e ela sorriu pra mim. Dentes claros, uma boca carnuda..a pele pálida, a maquiagem forte..e o cheiro..cheiro de sangue, perfume..aroma de mulher.
Não sei bem explicar o que fiz..mas em um segundo a ruiva estava lá...pronta para mim. Olhei para as amigas que evidentemente, estavam com inveja.Uau..tinha virado um Jonhy Deep e nem sabia! Passei meu braço em torno da cintura da guria e a levei para o canto mais escuro da pista. Era meu “debut” e eu merecia um pouco de privacidade afinal de contas. Levado pelo instinto, eu a beijei..seus lábios eram convidativos..mornos, doces..fiquei ali brincando com minha presa, ouvindo seus gemidos. Era divertido ver toda aquela entrega. Ainda mais para mim que nunca tinha sentido tal poder antes. Em dado momento olhei por cima dos ombros da ruiva e deparei com o olhar de Clara. Vi uma ponta de ciúmes? Ah..agora então eu iria a forra pelo que ela me fez passar com aquele gótico babaca. Intensifiquei minha performance..lembrei de todos os filmes de vampiro que tinha visto até então e, naquela momento, fui o vampiro dos vampiros. Gostei de ver a pele da garota se arrepiando ao meu toque,sua pulsação se acelerando..o sangue correndo mais rápido por suas veias, a medida em que ela ficava entregue às minhas mãos. Por prazer a seduzi, com prazer minha língua passeou pelo seu pescoço, meus dentes mordiscaram o lóbulo de sua orelha. Com sadismo eu sussurrei em seu ouvido o quanto ela era linda..o quanto era desejável e o que eu gostaria de fazer se não estivessemos em público. Senti o aroma do seu corpo se intensificando..e então meus dentes apontaram..um véu vermelho turvou meu raciocínio e, de repente, meus caninos cravaram naquele pescoço. O cheiro do sangue misturado ao Dolce & Gabbana que ela usava, me levou às alturas..e eu me lambuzei naquele doce instante. Senti o néctar descendo pela minha garganta, nunca estive tão vivo, nunca fui tão poderoso, nunca me senti tão bem. Com muito custo consegui me lembrar do conselho de Clara – Parar antes de matar. A ruiva gemia docemente em meus braços e eu não queria que ela esquecesse do que tinha acontecido. Queria que ela se lembrasse e de mim ao se deitar em sua cama naquela noite. Não..ela não iria me esquecer. Eu tinha direito àquele poder e iria exercê-lo. Sussurrei então em seu ouvido: - Você vai esquecer da mordida, mas não vai esquecer de mim, irá sonhar comigo todas as noites e irá me chamar em pensamento. Fiz um leve carinho em seu rosto e a soltei.
Ela cambaleou como o rapaz tinha feito anteriormente com a Clara. Parecia bêbada, mas não inconsciente. Por um minuto olhou para mim e sorriu, eu dei uma piscada e sorri de volta. Ela então subiu as escadas e tive a certeza de que, na cabecinha oca da ruivinha, minha presença se tornaria uma constante.
Vitorioso e alimentado, me dirigi até o lugar onde Clara estava me esperando. Sorri ao me aproximar e só então percebi que tinha “cutucado a onça com a vara bem curta”
            - Precisava ter demorado tanto? Pelo visto aprendeu bem depressa não é? - Clara estava mordida e isso me alegrou.
            - Calma, se tive tanto sucesso é porque você é uma excelente professora – não podia perder a oportunidade de cutuca-la. É impressão minha ou você está com ciumes?
            - Ciúmes eu? - Ela se mostrou ofendida – Porque eu teria ciúmes de você? Eu apenas criei você e mais nada, você é livre para fazer o que bem entender e com quem quiser.
Começei a gargalhar...estava feliz, imensamente feliz, como nunca estive antes. Era um vampiro, era fabuloso e ela..a mulher que eu sempre quis estava ali, com ciúmes de mim.
Dei dois passos e a agarrei pela cintura, fazendo com que se voltasse e então a beijei. Naquele beijo estavam todas as promessas, todas as dúvidas, as incertezas, os “ontem” e os “amanhãs”.
             - Boba, você quis que eu me alimentasse e assim foi..nada mais do que isso, onde está sua segurança minha vampira? Não vê que sempre foi e sempre será você a mulher das minhas noites? Minha criadora, minha professora, sempre minha..minha Clara.
Ela então me abraçou e com a doçura de uma criança, pediu-me desculpas..para logo em seguida dar-me uma violenta mordida no ombro.
              - Nunca mais..está ouvindo nunca mais demonstre mais prazer com outra mulher do que comigo.
Clara era assim..doce, amarga, cítrica..uma eterna bomba-relógio, uma bomba que eu adorava ter ao lado.
Naquela noite dormimos abraçados...como se não fosse haver um outro amanhã.


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